quarta-feira, 9 de julho de 2014

Da série: A espinha


Eu havia marcado com alguns amigos - reais, que existem, só pra deixar claro - de sair em um sábado de noite. Sim, depois de muitos típicos sábados em casa, baseados praticamente em ficar fuçando o perfil dos outros no Instagram ou jogando vídeo game, finalmente eu iria me juntar com a multidão da noitada.
No sábado de manhã, quando acordei, fui tomar café. Depois, fui ao banheiro, tirei o meu pênis pra fora, mijei, lavei as mãos e me olhei no espelho.
Foi nesse exato momento que a vi. Estampada bem no meu rosto, estava uma monstruosidade, uma aberração, uma anomalia, uma praga maligna; Uma espinha estava cravada bem na ponta do meu nariz. Mas não era uma simples espinha. Muito menos um cravo ou uma acne. Era um ser que tinha vida própria. Tinha o tamanho de uma bolinha de gude. Quase de tênis.
- Meu Deus, o que é isso? - eu não sabia se chorava, ria ou se gritava. Era assustador o casulo grudado no meu nariz. - Como essa espinha medonha foi parar aí? Ainda bem que hoje eu não vou ter...
Mas parei, lembrando que havia marcado de sair justamente naquele sábado. Nunca, quer dizer, quase nunca, saio aos sábados a noite e quando finalmente tenho um programa legal, se aloja no meu rosto uma aberração da natureza.
- Mas e agora? - perguntei a mim mesmo, sem tirar os olhos da grande, da imensa, da gigantesca espinha. - Eu não posso sair assim.
Eu sei, pode parecer frescura, mas era, de fato, uma acne monstruosa. Nem na minha adolescência, quando tinha quantidades incontáveis de espinhas e cravos, tive uma tão assustadora. Já faz umas duas semanas que ela nasceu, destruído a minha vida - eu sei, sou dramático - e resquícios ainda são visíveis.
 Mas voltando a história. Eu até tentei colocar um band aid em cima da espinha para escondê-la. Mas me incomodava aquele curativo, fazendo a bolha doer e coçar.
Triste, percebi que o que me restava era cancelar o compromisso.
Contudo eu precisava inventar uma desculpa. Não iria falar que não poderia sair porque surgiu uma espinha no meu nariz. O problema é que eu simplesmente não sei mentir. Sou péssimo em fingir e em criar respostas e justificativas que pareçam convincentes.
Passei boa parte do dia tentando inventar alguma desculpa que parecesse plausível.
Até que em um momento um dos meus amigos ligou:
- Daniel? Tudo bem? Então tudo de pé? O pessoal já confirmou. Vai todo mundo mesmo.
- Ah, oi, então eu não vou poder ir - respondi, sem graça.
- Mas por quê?
- Então é que... eu fiz... minha tia que passou mal - inventei, sem saber muito bem o que falar.
- Sério, mas o que aconteceu? - perguntou o meu amigo.
- Ela... pegou raiva. É, ela pegou raiva.
- Raiva? Como assim raiva?
- É que... um cachorro, isso mesmo, um cachorro mordeu ela  e passou raiva. Nossa ela começou a babar, se lamber, quase latiu. Precisou de pelo menos umas cinco pessoas pra segurar ela.
- Nossa, sério mesmo? Nunca tinha ouvido falar que raiva se pegava.
- Sim, mas pega e como pega - eu suava frio com tamanha mentira.
- Então você está no hospital com ela?
Mas nesse exato momento, quando iria responder que sim, um motoqueiro, um maldito entregador de pizza, chegou no vizinho e ao invés de bater na porta ou apertar a campainha, gritou " OLHA A PIZZA."
-Não, eu estou em casa mesmo - não podia, depois do berro, dizer que estava em um hospital.
- Você está em casa? Então você vai poder ir no barzinho?
Não sabendo mais o que dizer, simplesmente falei a primeira coisa que minha mente trabalhou em pensar.
- Não, eu já voltei do hospital, mas não vou poder ir pelo simples fato de estar preso em casa.
- Preso?  - instigou o meu amigo - Mas como assim preso.
- É que a chave da porta da minha casa quebrou quando fui fechá-la. Claro, depois que entrei.
- Mas você já chamou algum chaveiro, sei lá. E se acontecer alguma coisa na sua casa, como você vai sair?
- Pela janelas.
- Então você não está preso, não é? Porque você pode sair pela janela.
- Bom... é que... - mas ele me pegou na minha "brilhante" mentira.
- Daniel, fala a verdade. Tudo bem você não poder ir, eu aviso ao pessoal. Marcamos um outro dia, mas diga a verdade.
- Você tem razão mesmo. A verdade, a única verdade, é que não posso sair hoje pelo simples e sincero fato de que tenho que servir sopa para mendigos da rua - e meio tonto com tantas justificativas falsas. - É, eu sou uma boa pessoa.
- Como assim servir sopa para os mendigos? - meu colega, de fato, estava surpreso.
- Bom... - e respirando fundo - eu faço parte de uma ONG, chamada... éééé... Je Suis Couché. É uma ONG de origem francesa, sabe? Então, uma vez ao mês, pessoas voluntárias saem de madrugada e alimentam os mendigos da rua. Doamos comida, roupas, cantamos,  jogamos Uno com eles... enfim, fazemos muita coisa. E é justamente nesse sábado que teremos que fazer a maratona de solidariedade.
- Ah entendi. Não sabia que você era tão filantrópico assim - senti uma leve ironia na frase, mas não iria contestar, claro. - Tudo bem Daniel, sem problemas mesmo. Vou fazer questão de explicar pra galera o motivo humanitário que te levou a não ir.
- Imagina. Não gosto de me gabar - e passando os dedos na minha espinha, no meu novo órgão. - Agora preciso desligar.
- Beleza cara. Boa sorte aí com os mendigos. E " parabéns"  pela atitude - dessa vez eu senti a ironia clara e direta.
- Ah obrigado. Bebam muito por mim.
E desliguei o celular, sentido a latência mortal da espinha mutante.




Moral da história : Jé suis couché.

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